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quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Hayabusa O Ronin - 10 anos atrás

Tamura,10 anos atrás: 
Próximo ao Palácio do Imperador.

-- Ti-Neh! Ti-Neh! Corra! Temos que sair daqui agora!
Os dois corriam o mais rápido que as suas pernas cansadas e corpos feridos permitiam. Mesmo com a loucura que transbordava do ambiente rubro e com fedor de morte que a cidade havia adquirido, eles sabiam que a única chance que possuíam era chegar ao palácio Imperial a tempo.
Anjih era um jovem forte para os seus quinze anos. Desde cedo batalhava para entrar no corpo da Guarda Celestial, como seu pai e o seu avô. Treinava longas horas todos os dias para que chegassem pelo ao menos à capacidade física e mental mínima para tentar o teste de admissão.
Se tudo corresse bem, o teste seria realizado em menos duas semanas e pelo que todos diziam, Anjih tinha tudo para ser aprovado. Era forte, rápido, ágil, com um bom conhecimento em artes marciais e bastante disciplinado. Seria um bom Guarda Celestial.
Ou poderia ter sido...
Sua irmã mais nova, Ti-Neh, era uma criança comum para os padrões Tamuranianos. Apenas um pouco mais curiosa do que a maioria das famílias poderia querer. Suas perguntas, insistentes e muito rápidas, eram capazes de deixar seu pai confuso e seu irmão orgulhoso.
Mas aquela não era hora para perguntas. Na verdade a única coisa em que Ti-Neh conseguia pensar era numa razão para que Lin-Wuh tivesse permitido aquela desgraça rubra que caía do céu. Por todos os lugares em que haviam passado, os prédios, as casas, as pessoas... Tudo se desmanchava na medida em que a névoa caia e a chuva ácida aumentava.
E com a chuva vieram as suas tropas de pesadelo...
Mesmo fazendo força para olhar apenas para o chão, sem se preocupar com o que surgia aos lados, como Anjih havia mandado, Ti-Neh ouvia os gritos... Ouvia os choros de loucura e sentia a morte em cada uma dos sons de carne rasgada e gorgolejos de sangue.
O Palácio estava perto. Numa das poucas vezes em que levantou os olhos, percebeu um brilho ao redor dele que ia ate além de seus telhados dourados, englobando parte das casas e prédios que ficavam ao redor. Tinha certeza de que se chegassem lá, poderia ficar tudo bem. Só tinham que encontrar seu pai que estava lá dentro, como guarda pessoal do Imperador...


Tamura, 10 anos atrás:
Próximo ao Portão da Harmonia Dourada (leste) do Palácio.

As duas crianças se esgueiravam por qualquer pedaço de construção que pudesse ser proteção para a chuva que aos poucos aumentava. Sabiam  que ela só aumentaria e que a qualquer momento nem mesmo as marquises poderiam impedir que eles mesmos se transformassem em possas de gosma sangrenta.
Anjih vasculhava o caminho a procura de outros perigos e tinha a certeza de que olhos os espreitavam. Dezenas de pessoas corriam para todas as direções, gritando, chorando e implorando por perdão...
Como se alguém pudesse ajudar...
Mas os olhos que Anjih sentia nele não tinham nada de humano... Nem de medo. Eram olhos de criaturas que ele via apenas com o canto dos olhos, como vultos que se moviam sempre quando não se estava olhando e que quando se procurava não estava lá.
Mas estavam sim!
Pessoas caiam aqui e ali e em seus corpos inertes percebiam-se marcas que não poderiam ter sido feitas pela chuva de sangue. Eram marcas de instrumentos cortantes, garras e presas. Gargantas cortadas, corações fora dos corpos. Órgãos espalhados sem que se pudesse saber quem eram os seus donos.
Mas não se via quem ou o que estava matando e mutilando daquela forma. Só se ouviam os gritos entrecortados e sentiam-se as presenças. Seja lá o que fossem, estavam em grande número e aumentavam à medida que o céu ficava mais e mais cor de sangue.
A Guarda Celestial tinha sido dividida em dois grandes grupamentos. Um tentaria organizar os cidadãos e trazê-los, seguindo as ordens do Imperador, para dentro dos limites estabelecidos das ruas que ficavam próximas à entrada Sul do Palácio. Seja lá o que acontecesse, o máximo de pessoas deveria estar no local combinado até o pôr do sol. Quem não estivesse lá... Ninguém sabia o que aconteceria. Esse Grupamento era liderado pelo Comandante Yoshi, pai de Anjih e Ti-Neh.
O outro grupamento, liderado pelo Capitão Toranaga estaria encarregado de proteger os que chegassem ao palácio e o próprio Imperador. Seja lá o que fosse ocorrer, os magos do Imperador e a própria Figura de Jade estavam reunidos a portas fechadas com ordem de não serem interrompidos por nada. Um enorme encanto estava sendo conjurado.
Em cada um dos Pontos cardeais havia um Portão que dava passagem pelas muralhas com dezenas de metros de altura e outras dezenas de largura. Os portões eram: Portão da Paz Azul, ao Norte; Portão do Amor Imperial ao Sul; Portão da Coragem Escarlate ao Oeste e Portão da Harmonia Dourada a Leste. Esse último era onde as duas crianças estavam no momento.
As duas crianças estavam aos pés das muralhas. Por sobre elas, sentinelas montariam guarda, abrigados da melhor forma possível, sob os telhados das guaritas. Por toda extensão da muralha (e ela era gigantesca, sendo considerada por todos os eruditos e estudiosos, a maior muralha de todo o reinado) havia sentinelas. Dizia-se que nenhuma força de Arton seria capaz de Invadir a morada do Imperador.
O que era verdade até aquele momento. Não se sabia, no entanto, o quanto esse momento duraria, mesmo o custo para isso tendo sido muito alto.
Os restos de soldados atestavam isso. Cada mancha de sangue indicava o local onde alguém morrera, e havia milhares delas. Pedaços dos muros começavam a despencar, trazendo com eles corpos e restos de soldados.
Entre um e outro os dois jovens corriam, Deveriam ainda percorrer parte um quarto dos muros e como o que quer que tenha matado os soldados não haviam conseguido abrir os portões, não havia ainda passagem para entrarem, além dos quatro portões.
Aqueles homens haviam morrido para cumprir a promessa de não permitir que nada e nem ninguém que não fosse tamuraniano entrasse... Se o amontoado de corpos em pedaços ao redor da muraria não era maior, devia-se ao sacrifício daqueles mortos que caiam junto com pedaços dos muros. Meio carcomidos e derretidos, meio devorados violentamente mortos, os guardas resistiram até o fim.
Anjih continuava a ver, aqui e ali, por sob a sacada dos muros, o que oferecia alguma proteção contra a chuva, coisas que não sabia o que eram. Pareciam mortas... Mas presa em quase cada uma delas havia um pedaço de tamuraniano morto. Algumas estavam com flechas encravadas e com cortes feitos por espadas e machados, mas ainda se moviam e espreitavam.
Eram parecidos com insetos... Mas não eram insetos. Suas imagens tremeluziam e o espaço, ao redor, parecia embaçar. Mesmo entre os que estavam mortos, alguns ainda se mexiam, em espasmos, tentando ainda alcançar os dois irmãos que corriam, em sua sede de matar-mutilar-cortar-furar-derreter-devorar.
Alguns pareciam arqueiros, outros tinham garras que mais pareciam lâminas. Outros eram grandes como cavalos e de suas mandíbulas escorria um líquido esverdeado que à medida que caia, fazia buraco onde tocava.
Eram eles os culpados pela chacina... Mas por que?
Percebendo que Ti-Neh estava entrando em um estado de pânico que logo a impediria de continuar correndo, Anjih arrancou um pedaço de seu quimono e amarrou nos olhos de sua irmã.
-- Ouça, minha pequenina, eu quero que você seja corajosa agora, certo? Eu quero que você feche os olhos com força e só abra quando eu tirar a venda. O que eu mandar você fazer, você fará, certo?
-- Mas Anjih, -- ela estava chorando baixinho... Seus olhos arregalados só diziam "medo" -- e como é que eu vou correr?
-- Não se preocupe, minha linda... Eu carrego você.
Amarrou com um laço delicado, mas forte, a venda improvisada na irmã e com um pequeno esforço a ergueu sobre o ombro direito. Com o que restara de sua túnica do kimono a cobriu para que tivesse um mínimo de proteção. Seu próprio tronco ficaria desprotegido e os efeitos já podiam ser sentidos na pele que se avermelhava.
Assim preparado, Anjih correu. Correu como nunca havia corrido na vida...


Tamura, 10 anos atrás:
Nos muros do Palácio Imperial.

A multidão tentava entrar, todos ao mesmo tempo, pelo portão do Palácio Imperial. O pânico havia tomado conta da população que buscava a salvação prometida. Traziam trouxas de roupas, animais de criação e mascotes. Crianças choravam e gritavam por seus pais. Velhos e mulheres cobriam os olhos e se protegiam como podiam. Todos desesperados e cobertos de sangue.
Anjih percebeu que muitos estavam feridos. Outros carregavam mortos, sem perceber que o que levavam era apenas uma trouxa de carne morta. Braços pendurados,  mãos amputadas e pernas substituídas momentaneamente por muletas improvisadas... sem ao menos se dar conta disso.
Os soldados os faziam atravessar os muros pelo portão. O faziam mal e mal por estarem ocupados em combate. Lutando contra aquelas criaturas do pesadelo.
Ritmadas pelos trovões que soavam sobre suas cabeças, hordas de demônios insetóides colidiam e se lançavam novamente contar a pobre
barragem que os samurais da Guarda Imperial faziam. A medida que se afastavam e se preparavam para colidir novamente, suas garras e presas eram mais e mais lavadas de
sangue e restos de corpos.
Samurais caíam como moscas. Espadas ancestrais se quebravam sobre carapaças. Nada poderia impedir que aquela parte do grupamento fosse
derrotada e que os demônios invadissem o palácio. Se conseguissem, a população que havia entrado seria chacinada e haveria uma passagem para chegarem ao Imperador. Todas as esperanças estariam perdidas.
Nem Anjih e nem Ti-Neh teriam como se salvar... ou ver o pai novamente.  Nesse momento um alarido rompeu o ar. Anjih se virou e viu, ao final da rua, um batalhão samurai, fazendo escudo de proteção em torno de quase uma centena de cidadãos. Eram os últimos soldados protegendo os últimos cidadãos a serem salvos.
E, a frente do batalhão, com sua já característica barriga proeminente, O Capitão Toranaga.
-- Guarda Imperial! Vamos abrir espaço para que estas pessoas possam correr para o Palácio. Formação em cunha. Arqueiros!
-- Sim senhor? -- Um dos arqueiros, um homem magro e quase do mesmo tamanho baixo do Capitão Toranaga, porém com um olhar de coragem que emanava do seu único olho (o direito estava tapado por uma bandagem ensangüentada) se apresentou a frente. Era Akimoto, sargento responsável pelos pouco mais de trinta arqueiros que restaram ao grupamento.
-- Utilizem flechas incendiárias. Acertem os grandes... e, Akimoto...
-- Pois não senhor?
-- Atirar a vontade... quando acabarem as flechas, façam suas lâminas cantarem.
-- Certo, senhor.
-- Akimoto?
-- Senhor?
-- Foi um prazer servir com você, Akimoto-sam. Espero encontrá-lo no reino de Lin-Wu.
-- Eu também, Toranaga-sama... todos nós... -- o resto do que quer que Akimoto fosse dizer, se perdeu em seu peito. Não era hora de
palavras. Era hora de espadas sanguinárias retalharem corpos e flechas incendiárias cortarem o ar.
Toranaga se virou na direção de seus últimos homens. Menos de 200 haviam restado. Eram samurais que, em sua maioria, haviam sido treinados por ele mesmo. Conhecia-os como a filhos... sabia seus nomes e seus sonhos. A altivez que possuíam, mesmo frente a morte que se anunciava em letras indeléveis, era o que de melhor existia nos tamuranianos. As lendas colocavam a origem do povo de Jade junto aos elfos... era hora de mostrar que era verdade.
Seus rostos não demonstravam medo. Não que não o sentissem... apenas o conheciam bem. Como a um companheiro inseparável que pode lhe aconselhar, mas não dita suas ações. Seus olhos estavam fixos no inimigo que com o qual se bateriam. Se os Demônios queriam sangue, o teriam. Mas o sangue tamuraniano não cairia só. Toranaga olhou para a sua cidade. Estava em chamas. Mesmo os gritos que ouvira durante as últimas horas estavam se escasseando. Quase não tinham mais o que matar, aqueles malditos. O céu estava escarlate e o sol quase se punha no horizonte. Parecia um crepúsculo de sangue, no qual o próprio sol morria.
Sangue e ácido cada vez mais forte corroia o que sobrara das armaduras, depois de horas de lutas. Saíra com dez grupamentos de 500
homens. O seu era o último a voltar... Com menos de duas centenas, na
sua maioria, feridos e todos exaustos.
-- Samurais da Guarda Imperial! Alguém quer viver para sempre? -- Toranaga sabia a resposta antes mesmo da pergunta.
-- Não senhor! ? Duzentas vozes gritaram em uma só voz.
-- Atacar!
"Sim", pensou o Capitão Toranaga, o último capitão tamuriano, a frente de seus últimos homens, "este é um bom dia para morrer... tão bom quanto outro qualquer...".


Tamura, 10 anos atrás: 
Portão Sul do Palácio Imperial.

As flechas incendiárias descreveram arcos perfeitos sobre as cabeças dos samurais que corriam com suas lanças em direção aos demônios. Parte das criaturas caiu com a saraivada flamejante. Seus gritos eram assustadores a ponte de fazer com que os homens diminuíssem o passo de corrida. Mas não para fazer com que parassem.
A frente deles, com sua Katana desembainhada, o Capitão Toranaga gritava palavras e frases de estímulo, intercaladas com maldições aos demônios. Ao final das flechas, os arqueiros jogaram seus arcos ao chão, fazendo cantar as suas espadas ao saírem das bainhas. Formaram uma nova onda de ataque, liderados por Akimoto.
O Choque entre os demônios e os samurais foi brutal. Apesar de serem menos de cinqüenta criaturas, suas garras faziam vítimas, uma atrás da outra. Aqueles insetos que pareciam com arqueiros élficos derrubaram com suas flechas quase todos os homens da segunda onda. Mesmo Akimoto caiu, com setas purulentas encravadas pelo tronco e abdômen. Toranaga e aqueles que foram com ele na primeira onda se viram sós.
Poucas dezenas de homens ainda estavam de pé. E a qualquer minuto o próprio capitão tombaria. Caiam como moscas os samurais... mas mesmo assim levavam o máximo de demônios que podiam. Caíam cinco samurais, mas um demônio caia com ele. A questão se tornara: Quem seria erradicado antes? Os Homens ou os demônios?
A maior parte dos cidadãos conseguiu atravessar os portões... mas aqueles que eram muito lentos ou que não conseguiam correr... esses foram pegos ainda pela horda demoníaca. Anjih assistiu a cena com lágrimas nos olhos e, no peito, a dor da incapacidade. Aqueles homens davam as suas vidas por cidadãos que nem ao menos conheciam, para cumprir seu compromisso assumido com o Imperador. Aquele Homem lá embaixo era Toranaga-sama, amigo de seu pai e que, juntos, eram tudo o que Anjih queria ser. Era aquele homem que se batia em frente ao portão Sul. Era ele que esperava a apenas a honra de morrer como Samurai.
-- Toranaga!
Um grito cortou o ar. Vinha de dentro do portão e a voz que o emitira era conhecida. Com ela vinha a esperança que, teimosa como ela só, pareceu renascer. Na direção da voz, Anjih correu com o que restara de suas forças. Ao seu ombro, sua irmã sussurrou:
--"Papai?"


Autor: João Ricardo Marques

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